OS MOINHOS DE VALONGO E A INDÚSTRIA DA PANIFICAÇÃO
O pão, os biscoitos, a regueifa… são elementos, parte integrante do primeiro pólo de desenvolvimento económico de Valongo: a indústria da panificação. O segundo pólo foi, como se sabe, a indústria extrativa da lousa.
Esta atividade sustentada de Valongo: o pão, não teria alcançado o valor e a importância áurea, de outros tempos, sem o trabalho imprescindível e fundamental de um outro elemento: o moinho
Foram os moinhos de Valongo, ao longo das margens do rio Ferreira, que moíam, incessantemente, noite e dia, os cereais, especialmente: o trigo, o milho e o centeio, que manteve em funcionamento a indústria do pão.
Para muitos, o rio Ferreira estava para Valongo, assim como o Nilo está para o Egipto.
Este trabalho, pretende homenagear todos aqueles e aquelas atividades, a montante da indústria do pão, que foram de facto, os impulsionadores e o sustentáculo de toda esta atividade. Hoje, infelizmente, ignorados ou esquecidos, mas que foram elos do ciclo do pão.
Cada elo humano que participou na saga do pão, foi essencial nesta atividade, industrial e comercial…
O verdadeiro motor de toda a indústria de panificação foi, indubitavelmente, o moinho. Os moinhos de água, de roda horizontal, de rodízio, com penas, fixo à péla, são parte de uma engrenagem simples, elaborada e evoluída de um sistema de trituração de cereais primitiva, entre duas pedras, para moer e fabricar a farinha. Aproveitam as energias renováveis: o movimento das águas (cinética).
Em 1915, descrevia-se sobre Valongo: ” Possui ricos jazigos de minério e ardósia em exploração e um considerável tráfego de trigo manipulado com que abastece a maior parte dos concelhos limítrofes especialmente o Porto, além da importante indústria de moagens nas margens do rio Ferreira.”
A indústria de moagens, em Valongo, só foi possível pela atividade dos moinhos, cujas mós, eram acionadas pela força motriz das águas do rio Ferreira. Antes do aparecimento das moagens elétricas ou industriais, – que provocou a morte dos moinhos – eram os moinhos do Ferreira que forneciam as farinhas alimentares.
Os moleiros, um grupo profissional, pouco considerado, laboravam, sem horário de trabalho, afastados das suas comunidades, e porque não dizê-lo, da sociedade em que estavam integrados, mantendo em funcionamento, as inúmeras mós, que nos moinhos localizados nas margens do rio Ferreira, transformavam os cereais em farinha (trituração do grão entre duas pedras).
Alguns moleiros, viviam no próprio moinho, com a família, num espaço acanhado, contíguo ao moinho. Uma arte, que foi transmitida de geração em geração, de pais para filhos, como uma espécie de testemunho. Alguns nasceram e morreram moleiros. Uma vida de solidão, rodeada de paisagens bucólicas, apenas quebrada, pelo convívio daqueles que levavam grão ao seu moinho, de onde retiravam a maquia. As frequentes cheias e os caudais impetuosos do rio, provocavam elevados prejuízos, destruindo grande parte dos moinhos. Era preciso recomeçar, sempre.
Os padeiros e as padeiras, estas últimas um grupo especial, bem cotado e considerado, tanto na vila como fora dela, era o mote para que nos arredores, com uma certa rivalidade impregnada de inveja, dizerem:
Casar em Valongo
É melhor que ser bispo
Tem mulher para a cama
E burra para todo o serviço
De facto a padeira era incansável. Depois de passar horas a preparar e a confecionar o pão, ainda tinha que, às terças, quintas e sábados que o ir vender de burro à cidade do Porto e voltar pressurosa, para passar a serra antes do anoitecer.
Os padeiros, obviamente não estavam parados. Para além de ajudarem em todos os passos da confeção do pão. Nos outros dias, em que a padeira não saía para a cidade do Porto, iam pelo monte, apanhar lenha e outros arbustos, como queiró… para abastecer com este combustível, os fornos de cozerem o pão.
Quando a indústria do pão entrou em declínio, devido ao aparecimento das primeiras padarias na cidade do Porto e das indústrias de moagem, os valonguenses não ficaram de braços cruzados. Procuraram nos biscoitos, (ainda hoje muito apreciados) na regueifa, na tosta azeda… alternativas para atenuar o impacto da crise.
Felizmente que a extração da lousa (ardósia) estava em franco desenvolvimento, mantendo latente a vida económica da vila.
Para os dias de hoje, espero bem, que as padarias, confeitarias e outros empreendedores, que confecionam: o pão, a regueifa, os biscoitos e outros produtos congéneres tradicionais, optem sempre, na sua preparação e confeção, pelos ingredientes de melhor qualidade, para que, se possa recuperar, a fama e o prestígio granjeados por Valongo.
O afamado pão, os biscoitos e a regueifa, tornaram-se, noutros tempos, ex-libris, desta cidade. Eram iguarias especiais, procuradas e apreciadas, avidamente, por todos aqueles que nos visitavam. Funcionavam como sinais de paragem obrigatória!
A celebérrima “regueifa” de Valongo, aqui inventada e imitada em tantas regiões do país, continua a confirmar, desde séculos, a sua reputação. Dizia-se, que apesar de imitada por todo o lado, o valonguense conhecia sempre o sabor da sua regueifa. Especialmente pela qualidade da sua farinha e da sua água.
Estas preciosidades gastronómicas, aliadas à hospitalidade das suas gentes, catapultou Valongo para o mundo. Uma indústria caseira e tradicional, apoiada, na época, em fornos de cozer, a lenha. Os seus aromas e sabores, penetravam e penetram ainda os nossos sentidos, especialmente dos nossos avós. São sabores de saberes ancestrais que despertam memórias. Os sabores tradicionais são memórias!
A cultura do pão e da lousa, são elementos intemporais de Valongo. Pela sua história e o seu passado que ainda mexe e se reabilita em termos tecnológicos.
Outra figura preponderante, muito ignorada: o Almocreve. Os almocreves, os verdadeiros agentes comerciais, que engrossavam parte da população de Valongo. Transportavam, no dorso das suas alimárias, para os moinhos, os cereais, nomeadamente o trigo, essenciais à manutenção das indústrias de moagem e panificação. Eram eles que colocaram Valongo em contacto com outras terras, levando as mercadorias de Valongo e Porto e trazendo na volta, o trigo.
A situação geográfica e privilegiada de Valongo, no itinerário para outras terras, local de paragem obrigatória, foi vital para desenvolver a sua indústria e comércio.
Em 1949, Américo Costa, no Dicionário Corográfico de Portugal Continental e Insular, escrevia: “Em 1708 Valongo era já uma grande povoação, arruada e habitada por muitas padeiras e almocreves. Era então um importante centro comercial, célebre pelas suas padarias, que abasteciam os mercados vizinhos, e, sobretudo, o do Porto, onde não havia ainda fornos para o fabrico de pão.
Às cento e sessenta rodas, que as águas do rio Ferreira moviam, proporcionando a farinha necessária para a manipulação do afamado pão de Valongo, deve esta vila o seu grande incremento no século passado. Esse pão, que dali saía, acomodado em amplos canastrões sobre o dorso das muares, convertia-se em ouro, que trazia a felicidade aos lares valonguenses e o progresso da freguesia.”
Em 1865, existiam em Valongo cerca de 100 padarias, e foi graças a um tributo de cinco réis sobre cada alqueire de trigo importado e a outros tributos sobre outros produtos alimentares, que a igreja matriz de Valongo começou a ser edificada em 1794.
Na revista “O Tripeiro” de Agosto de 1950, a padeira de Valongo é notícia: “Em tempos idos, as padeiras de Valongo vinham à cidade às terças, quintas e sábados, e só nestes dias da semana é que faziam a venda do saboroso biscoito que tanta fama ganhou entre o povo portuense.
Os biscoitos, manipulados e trazidos diretamente da risonha e próspera vila de Valongo por fortes alimárias em grandes canastras que aos pares e dos lados poisavam sobre os dorsos nus, vinham acondicionados em alvas sacas compridas, cuja porção, que não ia além de duzentos e cinquenta gramas, era separada por uma delgada corda que envolvia e apertava em determinados pontos, assim como a tosta azeda.
A Rua do Bonfim popularizou-se com a passagem das padeiras de Valongo.
Distribuído o biscoito e a tosta azeda pela clientela do burgo tripeirinho, novamente as padeiras regressavam a Valongo, mas utilizando-se agora dos animais. Assim, trepavam para eles com desenvoltura e, comodamente sentadas sobre as já citadas cestas de biscoitos, lá iam cavalgando, pressurosas, porque a perigosa serra de Valongo tinha de ser atravessada com dia.”
Acompanhei algumas vezes, o rio Ferreira, de montante para jusante, pelas suas belíssimas margens, ponteadas de moinhos de água. Encontrei-os em ruínas, quedos, imóveis mas também, esventrados, humilhados e ofendidos. Eram ou são, uma pálida imagem do seu valor, importância, e imprescindibilidade. Quando se olham no espelho de água, já não se reconhecem e sentem-se talvez entristecidos e envergonhados. Vivem apenas das suas recordações e das suas memórias. Outros apenas com algumas pedras das paredes a demarcar o espaço dos moinhos, nem em bicos de pés se conseguem mirar ao espelho de água: consideram-se já, desaparecidos ou são apenas esqueletos. Já não se escuta o som incessante das rodas dos moinhos. Os protagonistas estão ausentes ou deixaram-nos apenas a saudade do seu tempo, mas fazem parte integrante de um passado recente que importa recordar.
Penso que, alguns moinhos, deveriam ser recuperados. Sinto-os ainda, carregados de segredos, de mistérios e de memórias… Existe na confluência das serras de Santa Justa, Pias e Alto do Castelo, onde o rio Simão encontra o Ferreira, um núcleo de moinhos (moinhos do Cuco). Valiosos exemplares da arquitetura vernacular. Reconheço que não é fácil, pertencem a particulares. Eles merecem um esforço das entidades competentes, porque fazem parte da nossa história e do nosso património. São um marco da identidade cultural de Valongo.
Quantas vezes, acompanhando visitas de estudo de alunos a estes moinhos, lhes dizia: “ – É tão necessário dar a conhecer às novas gerações, o funcionamento do computador, como dar-lhes a conhecer, o mecanismo perfeito e primitivo do sistema de moagem entre duas pedras!”
Foto e texto: Joaquim Marques – 2015.05.18
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